Quando foi eleito para a cátedra de
Pedro, em 2005, o Cardeal Joseph Ratzinger carregava um fardo, a meu ver,
pesado: tinha sido durante 24 anos Prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé.
Este órgão, que tem a incumbência de
promover e salvaguardar a doutrina sobre a fé e a moral católica em todo o
mundo, é talvez o mais importante na estrutura Cúria Romana. Mas, simultaneamente,
e por força das suas atribuições, é também aquele que mais frequentemente é
visado pelos críticos da Igreja, que vêm nele uma espécie de “condicionador” da
liberdade dos fiéis, a quem impõe valores éticos e morais e regras doutrinais.
Virá a propósito referir que até ao início do século XX a Congregação para a
Doutrina da Fé era conhecida como o Tribunal da Santa Inquisição.
Ora, o exercício do cargo de Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, durante grande parte do pontificado de João Paulo
II - um dos Papas mais carismáticos de sempre - investiu Ratzinger no papel de
uma personagem extremamente conservadora, tendo sido muitas vezes apontado aos
olhos da opinião pública como o responsável pela falta de adaptação da doutrina
da Igreja aos tempos modernos.
Porventura,
por causa desta condicionante, quando a 19 de Abril de 2005 o Cardeal Joseph
Ratzinger foi eleito Papa, fiquei algo expectante quanto ao exercício do seu
ministério. Também eu fui muito marcado pelo pontificado avassalador de João
Paulo II e em muitos momentos fiquei com a sensação de que Papa polaco teria
ido mais além em questões fraturantes para sociedade contemporânea, não fossem
as imposições emanadas pela Congregação para a Doutrina da Fé, de que era
responsável o Cardeal alemão.
E os
meus receios não se desvaneceram nos primeiros tempos do seu pontificado altura
em que Bento XVI promoveu a recuperação de alguns símbolos tradicionais da
indumentária pontifícia, como por exemplo, o uso de sapatos vermelhos... Esta e outras práticas, confesso-o, afiguraram-se-me a uma espécie de tentativa de restauração de
uma certa "aristocracia papal" que achava desadequada para o nosso tempo.
Mas
com o passar dos meses, e dos anos, a minha opinião acerca deste Papa foi-se
clarificando e fui descobrindo nele um número crescente de qualidades que me
levaram a respeita-lo e a admirar cada vez mais a sua personalidade.
Homem
estudioso, muito inteligente e extremamente culto, Ratzinger é dado a uma timidez
muitas vezes encontrada em personalidades com estas características, mas longo
do tempo foi transformando a sua forma de estar em público, adequando-a às suas
funções de Sumo Pontífice. Uma transformação deste género é sempre merecedora
de relevo, mas, na minha opinião, a de Bento XVI, merece ainda mais destaque dado
que se operou, e de uma forma particularmente notória, num homem de idade já
avançada.
De
resto, o pontificado de Joseph Ratzinger, não foi fácil, sendo pontuado por
momentos de grande intensidade e polémica, de que será exemplo mais
significativo, a denúncia de casos de pedofilia em larga escala no seio da
Igreja Católica. E foi nestes momentos, e noutros, em que por exemplo assumiu
publicamente erros históricos da Igreja, que Bento XVI se revelou um homem
determinado e um líder particularmente incisivo, que procurou demonstrar a
todos quantos o rodeiam que a resolução dos problemas começa pela aceitação da sua
existência, sem ambiguidades e passa pelo seu tratamento de forma séria nas
suas diversas vertentes, sejam elas religiosas, jurídicas, económicas,
políticas, etc.
Em
termos doutrinais/intelectuais, Bento XVI lega à Igreja e aos crentes em
particular, um pontificado marcado por um pensamento focalizado particularmente
no tema da fé. Seja sob a forma escrita, editada e publicada, seja através das
intervenções que foi proferindo ao longo dos últimos oito anos, o Santo Padre, teorizou
profundamente sobre a forma de entender a fé à luz da razão. Sobre a forma como
cada ser humano pode livremente descobrir a verdade da fé se se predispuser a
percorrer o caminho que leva à verdade, alimentado pela fé.
Em
termos pastorais, do pontificado de Bento XVI ficam as suas viagens apostólicas,
realizadas algumas delas em circunstâncias muito difíceis, e os seus encontros com
personalidades ligadas a meios académicos, científicos, culturais e políticos, onde
procurou constantemente lançar pontes para o diálogo inter-religioso, cultural
e científico.
Enfim, um pontificado relativamente curto, mas muito valoroso, que chega ao fim por vontade do próprio, num gesto sem paralelo na história recente da Igreja.
Enfim, um pontificado relativamente curto, mas muito valoroso, que chega ao fim por vontade do próprio, num gesto sem paralelo na história recente da Igreja.