O David dos “Albertos” é um menino a quem os familiares e amigos, carinhosamente, chamam Bertinho. Vive numa qualquer aldeia deste país e é uma criança feliz. É atento ao mundo que o rodeia, teme os seus perigos, mas a felicidade com que vive a sua infância só lhe permite antever um futuro risonho.
Hoje, ao acordar, olhou para o calendário dos Missionários Combonianos que avó lhe pendurou na parede do quarto. Estamos a 31 de Dezembro, o derradeiro dia do ano.
Bertinho, ainda envolvido no quentinho dos cobertores, sabia que se aproximava um dia especial.
“Que bom, nos últimos tempos os dias especiais têm-se sucedido: os anos do irmão, o Natal e agora o Ano Novo...”
Quando ainda era acometido por este pensamento e se refazia para o mundo após uma noite de sonhos, a mãe entra-lhe pelo quarto. Acende o candeeiro da mesinha de cabeceira e à média luz sussurra... “Bom dia meninos...”
Trazia consigo duas tigelas de leite, com sopas de molete de véspera.
De imediato, Bertinho retribui o cumprimento carinhoso da mãe e levanta-se, encostando-se à cabeceira da cama, com a almofada de permeio para lhe acomodar o encosto. Ao seu lado, Zé Alberto, o irmão com quem partilha a cama, tem mais dificuldade em se libertar do mundo dos sonhos. Mas o aroma do leite quentinho, ensopado no trigo do molete ressesso e uns afagos da mãe lá o trazem de volta ao mundo da luz.
Passado uma hora, Bertinho, devidamente vestido e bem acordado, calcorreia já os enregelados caminhos da aldeia, endurecidos pela geada da madrugada. Faz o percurso que separa a sua casa do posto de recolha de leite, transportando consigo a leiteira, que vai segurando alternadamente com uma das mãos, para repartir pelos dois braços o peso do leite que vai entregar. Com passadas proporcionais ao seu tamanho, vai caminhando ligeiro, mas evita fazer movimentos bruscos para não entornar o leite...
Depois de despejado o conteúdo da leiteira numa vasilha de medição, a senhora Gracinda, uma mulher na casa dos cinquenta e muitos, de estatura baixa, com rosto bochechudo e cabelos brancos, anunciou: “10 litros”. Apontou a quantidade na lista de entregas e despediu-se com um “Então adeus e até pró ano! Boas entradas…”. O Bertinho ficou satisfeito. A medição do leite rendeu e a responsável pelo posto de recolha da Agros foi ternurenta nas palavras da despedida.
O Bertinho reveza-se com os irmãos e a mãe na tarefa de entregar o leite no posto de recolha. Orgulha-se do trabalho que faz, porque isso fá-lo sentir parte integrante da economia familiar e “o trabalho infantil termina onde começa o bem-estar da família” – pensa ele.
No caminho de volta a casa, passa pela senhora Carolina, a padeira que vende pão numa canastra em frente à loja da senhora Matilde. Porque na manhã seguinte “não haverá pão”, Bertinho vai comprar quantidades reforçadas. Duas dúzias e meia de moletes, mais dois cacetes, para as rabanadas... A Carolina padeira, uma senhora já entrada nos anos, prá aí da idade da avó Rosalina, termina com recomendações de agasalho por causa do frio e depois de pela enésima vez, lhe ter dito que os seus avós foram os únicos convidados na festa no seu casamento, despe-se dele com desejos de muita saúde, boa passagem de ano e “recomendações aos pais e avozinhos”.
Bertinho retoma o seu caminho de regresso a casa. O frio daquela manhã seca de inverno provoca-lhe cieiro nos lábios e as suas faces enregelaram; mas o menino sente o calor da amizade a invadir-lhe o coração!
Ao passar pela casa da senhora Augusta “manquinha”, àquela hora da manhã com a porta da rua ainda cerrada, vai meditando no quão importante foi para si o ano que está prestes a terminar.
“É uma injustiça que deseje ansiosamente, como as pessoas adultas, a chegada do novo ano quando este me trouxe tantas coisas boas” – exclama em pensamento.
Ao matutar nestas ideias, no seu íntimo balançavam sentimentos aparentemente contraditórios. Por um lado, a nostalgia que o invadia motivada pelo final do ano, fazia-lhe crer que as pessoas mais velhas eram injustas, porque não valorizavam suficientemente tudo que tinham conseguido nesse período de tempo; por outro lado, apreciava a fraternidade que se gerava entre os adultos, com a chegada do ano novo. Aquele espirito de aparente partilha e concórdia, apertava-lhe o coraçãozito, embargava-lhe a voz e até lhe provocava lágrimas de felicidade.
Absorvido nestes pensamentos, Bertinho entra na Costa do Lugar, um caminho ingreme, em terra batida, que vai percorrer, agora em sentido descendente. Dos sacos que carrega na mão esquerda provém um aroma agradável a pão fresco. Aos primeiros metros não resiste à tentação! Equilibra a leiteira vazia no braço direito, e, com a mão agora livre, retira de um dos sacos um molete, que leva á boca e trinca com deleite. Enquanto caminha, as dentadas no pão vão-se sucedendo ao ritmo da mastigação.
Desce cerca de trinta metros e cruza-se à direita com o senhor Oliveira e a senhora Amélia, marido e mulher, que plantam batatas nos quintais da casa da calçada. Ao vê-lo assim – leiteira numa mão, sacos do pão na outra e a mastigar – exclamam:
“Ah Bertinho! Tu fazes pela vida para chegar ao ano novo… É assim mesmo!”.
Um bocado embasbacado com a situação, mas sem perder o despacho, Bertinho responde “Se quero lá chegar, embora falte pouco, não posso deixar de me alimentar…”.
Em resposta a esta afirmação tão expedita, o casal desata uma gargalhada em uníssono. Bertinho, ato contínuo, solta a saudação: “Tenham um bom ano! …”.
“Também para ti!... ” Respondeu o casal a uma só voz.
O senhor Oliveira cobre de novo a careca com um chapéu que tinha retirado da cabeça enquanto falava com o gaiato e volta agarrar com vigor o cabo da enxada, para concluir a abertura de mais um carreiro de batatas.
Bertinho seguiu em direção a casa.
O espírito do novo ano enche-lhe cada vez mais o peito. Desta vez até tinha sido ele a desejar bom ano!
Pouco depois de dobrar a curva do Prazo, dá de caras com a senhora Margarida de Jesus, que regressava a casa depois de ter ido à fonte de Canhões lavar umas peças de roupa. Bertinho saúda-a com um “Bom dia senhora Margarida” e deseja-lhe um bom ano. A senhora, baixinha e de aparência franzina, com sessenta e poucos anos, responde com um abraço e dois beijos, acompanhados de elogios à boa educação e desejos de um bom ano.
Dali, o Bertinho já avista a sua casa e pouco tempo depois o seu percurso estava terminado.
Como está nas férias do Natal e já fez em devido tempo os deveres mandados pelos professores, o Bertinho vai passar o resto do dia liberto de obrigações, que não é o mesmo que dizer sem ocupações...
Ainda antes do almoço, vai, a mando da mãe, à mercearia comprar canela moída, para pôr na aletria... Aproveita estar ali dois passos e vai de novo dar uma olhadela no presépio da barbearia do Boaventura. Bertinho é um apreciador de presépios e este é um dos que mais admira na aldeia. Não é muito numeroso em peças, mas estas são muito bem trabalhadas e o curral, em madeira, é perfeito! Talvez tenha sido feito por algum carpinteiro profissional... E que dizer do efeito que o senhor Boaventura consegue ao combinar o verde do musgo com os ramos de austrália onde coloca a iluminação? "Perfeito (...) " – pensa para os seus botões.
Estava ainda pendurado na rede que contorna o canteiro defronte da janela da barbearia a observar o presépio quando ouve gritar:
“Bertinho, ó Bertinho... “ – Era o seu colega Filipe, filho da Emília costureira, que chamava por si. Descia da casa do senhor Gabriel Sousa, que é tio de ambos. Veio ao seu encontro e convidou-o a passar por sua casa. Já tinha conseguido, numa troca com o Tó Tibério, arranjar-lhe o cromo do Néné, que lhe faltava na caderneta. Além disso, este ano, o Bertinho ainda não tinha visto o seu presépio...
“Vais ver Bertinho... Está um espetáculo! Tem quarenta peças, só este ano, comprei mais seis ovelhas, um moleiro, dois pastores e uma banda com cinco músicos! Está um espetáculo! Anda daí...”
Bertinho não gostava destas deslocações imprevistas. A mãe e a avó estariam a olhar para o caminho para ver quando regressava e, na certa, se persentissem que se atrasava, começariam logo a suspeitar o pior e haviam de pôr pés ao caminho para saber de si. Ainda assim...
“A casa do Filipe fica aqui perto, ele tem o cromo que me falta para completar a caderneta e posso dar uma olhadela no seu presépio...” – Pensou.
Ora, antes que alguma reflexão mais profunda o afastasse desta escapadela, aceitou o convite do amigo.
“Vamos lá, mas tem que ser rápido (...) tenho que levar a canela à minha mãe” – Disse.
“É um instantinho, vais ver... “ – Disse o outro.
Como planeado, a visita foi rápida e Bertinho, já com o cromo do Néne no bolso, regressa a casa pelo carreiro da levandeira, para encurtar distâncias.
A seguir ao almoço teve uma surpresa. Apesar de não ser Domingo, a RTP 1, começou a emitir o programa do Vasco Granja e os quatro irmãos (três rapazes e uma menina) tiveram uma sessão surpresa de Pantera Cor-de-rosa que se prolongou por mais de uma hora.
O resto da tarde, Bertinho, passa-a a ajudar a família; ora nos trabalhos da quinta – essencialmente a colher alimentos para os animais, porque estes, mesmo em dias de festa, têm que comer, como lhe ensinou seu Pai; ora em lides mais caseiras.
De premeio, ainda há tempo para umas sessões de jogo das escondidas, em versão de cowboys, em que participa grande parte da miudagem do lugar. Quer dizer, os rapazes, bem se vê pela natureza do jogo! A organização é simples e fica quase sempre a cargo dos mais velhos. Reúne-se a garotada disponível e formam-se duas equipas, neste caso, de oito elementos cada. Uma esconde-se, outra caça... As vitórias vão-se repartindo pelas duas equipas. Mas jogo acaba inesperadamente: o João Roque, “o terrível” do lugar, numa manobra arriscada, partiu a pistola de plástico que tinha recebido no sapatinho... Que drama!...
Ao anoitecer a mãe, a avó Rosalina e a senhora Felicidade – uma empregada que faz parte da família e é uma outra avó para o Bertinho e seus irmãos – reúnem-se na cozinha para preparem o jantar de ano de novo. Escolhem a hortaliça, descascam batatas, tiram o bacalhau do demolho... Uma azáfama de panelas e tachos!
Ao Bertinho, ao Zé, á Rita e ao Nuno é entregue a tarefa de pôr a mesa. Louça, talheres, copos, guardanapos de pano… tudo conferido!
“Há! Falta o alho cru que os adultos fazem questão de misturar com as batatas, a hortaliça e o bacalhau.” – Assunto resolvido a avó já o descascou e partiu aos pedaços.
“E o galheteiro?” Também já está…
Agora parece estar tudo pronto, o movimento em torno das panelas está reduzido ao mínimo, a lareira arde intensamente e a cozinha está quentinha. O Bertinho e a sua irmã - a Rita - vão chamar o avô Afonso, para que se venha sentar na cabeceira da mesa.
Lá fora a noite está fria e quando se abre a porta da rua sente-se o vento gélido. Na cozinha, a mesa, com três metros de comprimento, está posta. Ao centro, o bolo-rei, ladeado por um arranjo de natal, feito pela Rita, que apesar de novita, já revela dotes de decoradora. O reboliço das cozinheiras acalmou, já todas trocaram de roupa. E eis que se sente uma corrente de ar inesperada. A porta entreabriu-se. É o pai que chega do emprego! Finalmente! Numa mão trás uma regueifa de pão-de-ló e na outra uma caixa muito bonita com duas garrafas, uma de vinho do porto e outra de espumante.
O Jantar vai começar. A Rita, em última hora, propõe que se coloque um castiçal na mesa. Mas todos concordam que o adereço é dispensável. O Nunito acaba de calçar as pantufas ao avô que aquecia os pés à lareira. A mãe roda-lhe a cadeira no sentido da cabeceira da mesa.
Agora sim, está tudo pronto, o jantar de ano novo vai começar. Ao cimo, por de trás da cabeceira da mesa, a leira continua a arder com veemência. Á cabeceira senta-se o avô Afonso. À sua direita a avó Rosalina, à direita desta a mãe do Bertinho. Do outro lado, em frente à mãe, senta-se o pai, ladeado pela Rita à sua direita, que fica sentada entre si e o avô e à esquerda pelo Nuno, o filho mais novo. Á esquerda do Nuno senta-se a senhora Felicidade. De frente para ela, do outro lado da mesa, senta-se o Bertinho e á sua esquerda, entre si e a sua mãe senta-se o seu outro irmão – o Zé.
O jantar começa com a avó a desejar um bom ano para todos e a pedir a Deus para que no próximo ano, neste mesmo dia, a família possa estar de novo reunida a festejar a chegada de um novo ano.
“Se assim não acontecer e eu já tiver partido, peço-vos que rezeis um Padre-nosso pela minha alma”- concluiu a avó Rosalina.
O Bertinho repara que neste momento as lágrimas invadem os olhos de todos quantos se sentam à mesa. Mas a certeza de que para o ano ali se encontrarão todos a festejar a aurora de um novo ano, ajuda-os a enxugar as lágrimas.
............, 31 de Dezembro de 1982.
(O Ano Novo está próximo mas ainda não chegou... A história do "Ano Novo do Bertinho" continua para o ano! Bom ano para todos!)